quinta-feira, 14 de outubro de 2010

ACHEI O BAIA

De tempos em tempos me acontecem descobertas musicais incríveis. Sempre uma melodia toca meus tímpanos e me encanta de uma maneira diferente. No entanto, fazia tempo que isso não acontecia. E mais, não me recordo da última vez em que algo contemporâneo foi capaz de me envolver de verdade. Os sons, a maioria das vezes, pertenciam a artistas consagrados que já haviam embarcado no "trem das sete" ou cuja obra parecia que apenas eu não conhecia. Mas há uma semana, mais ou menos, me encontrei com um lançamento que me conquistou por etapas e, desde que ousei fazer o disco rodar, tenho escutado todos os dias - e pesquisado sobre, conversado, testado.


Como costumo fazer uma vez a cada 15 dias, em média, desbravei a montanha de discos e DVDs que se acumulam na redação. Como critério de seleção, separo vários lançamentos que podem ser interessantes. Às vezes são de artistas que curto ou de alguns que gostaria de conhecer melhor. Outras vezes, é a capa do disco, a cara do artista, os nomes das letras ou os convidados especiais que me fazem tirar um CD da estante. Da última vez, foi tudo isso que fez o tal Baia passar pela minha primeira triagem.




Depois de constatar que ninguém por perto sabia do que tratava aquele material azul, fiquei intrigada. Entregue a todos os pré-conceitos e possibilidades, tinha certeza apenas de que era uma banda de rock com alguma pitada de Zé Ramalho, convidado da quarta música do álbum Baia no Circo. O título denuncia outra coisa que merece ser levada em conta. O show foi gravado no lendário Circo Voador, casa de shows da Lapa, bairro boêmio carioca por onde passaram grandes shows do rock nacional. O selo de uma gravadora forte, a Som Livre, por um lado também dá algum crédito.


As constatações aguçaram tão bem minha curiosidade que arranquei sem dó o Aqualang, do Jethro Tull, do meu toca-discos do carro para descobrir o que era Baia antes de sair do estacionamento do jornal. A primeira música, Eus, desestruturou toda minha desconfiança. Depois de uma linda introdução de guitarra, apareceu a voz abaianada daquele que chamei Baia. As frases, quase recitadas como um cordel-roqueiro, devem ter arrancado um sorriso: "eu peço licença nessa hora, pra mostra a minha arte a minha dor, como tudo que é arte é sem pudor, eu coloco a minha alma para fora". Antes de lhe conceder licença, um rock genuíno, com uma letra inteligente e descontráida, como o gênero demanda, invadiu meu ser roqueiro com ondas sonoras consistentes. Pronto, tive a certeza de que adoraria ter aquele som como companhia na volta para casa.

EUS

Desde que eu nasci tô no conflito
Aflito pra saber porque
Com tanta gente que eu podia ser
Eu nasci eu
Perdido entre sentimentos bons
Pequenos delitos e contradições
Entre a luz e o breu

Molho o pão no café e levo fé
Que Deus é preto e fuma cachimbo
Nasce menino, cresce mulher
Vira fumaça, não tem destino
Brinca de roda, roda nos ventos
Dança na chuva, pois é um índio
E cai no frevo, dança bale
No que imagino
Em tudo o que há, Ele é

Mas eu não sou um só
Não sou só um
Eu também sou milhões de eus
Não sou Deus mas sou Eus

Pois sou eu quem acredita em mim
Sou eu quem me explico
Quando me complico
Eu mesmo atendo as minhas preces
Eu mesmo quem ouço
Os meus próprios gritos

Oh, brother!
Buscando a minha própria conclusão
Oh, brother!
Foi Eus quem quis assim
Oh, brother!
Eus é Deus dentro de mim... Graças a Deus


A letra da música que abre o show eu li na internet na mesma noite, desacostumada a averiguar no encarte do disco. O interessante é que encontrei apenas atribuições a Baia e Rockboys na rede. Por algum motivo, naquela noite, todas as minhas recorrências ao Google trouxeram o Baia acompanhado dos garotos do rock; e nada de informações específicas sobre o cara no estilo Wikipedia. Interessada no som, deixei as pesquisas de lado e me dediquei a ouvir música por música. Na mesma ocasião, também tive a chance de apresentar o som à Gláucia e à Vilhena, numa espécie de teste de audiência. A cotação de Baia esteve totalmente positiva, e continua assim.

Em situações adversas, os colegas críticos de trabalho, amigos de diferentes apetições musicais e namorado avaliaram como "muito bom" este rock inédito. Para mim, que tenho ouvido o Baia no Circo pelo menos duas vezes por dia, este é um álbum completo, e não me assustarei caso se torne um bom fenômeno de sucesso. Tem a mesma característica de álbuns clássicos como Dark Side of The Moon, do Pink Floyd, Mais do Mesmo, da Legião Urbana, Líricas, do Zeca Baleiro, Infinito Circular, dos Novos Baianos, Moving Pictures, do Rush, Holy Diver, do Dio, Black Force Domain, do Krisiun, Back in Black, do AC/DC, Sabbath Bloody Sabbath, do Black Sabbath, Rust in Peace, do Megadeth... É bom do começo ao fim. Um clímax só. Não tem música ruim.

Se pode-se eleger um hit do Baia no Circo, o cargo fica com a balada-rock Habeas Corpus. Mais uma vez, a letra inteligente, de poesia peculiar, fica em primeiro plano, o que acontece em todas as músicas. Como geralmente acontece nas baladas-rock-hits, a história fala de um relacionamento amoroso. Mas não esperem uma aura romântica. "Me ameça quando diz eu vou embora, ora, vá, você tem o direito de ir e vir, mas eu também tenho o meu direito de querer ficar, não precisa pedido de habeas corpus, a porta está aberta", diz o refrão. E eu primo por boas letras.


Em tentativas de definir e comparar o som de Baia, passei por vários nomes. O primeiro deles, Raul Seixas, por motivos óbvios. Além de ambos serem baianos e cantarem parecido, o som deles não consegue receber nenhum rótulo que ultrapasse o simples e puro Rock. O segundo músico lembrado é Zé Ramalho. O paraibano faz participação especial na música Tá Tudo Mudando, e deixa clara a semelhança em estilo de compor/traduzir e cantar. No DVD, Baia confirma que sua voz muito o influenciou. Umas duas pessoas disseram que as músicas de Baia parecem com as de Mombojó. NÃO. Eu to falando de rock.


Um dos poucos materiais escritos sobre Baia na internet desvenda algumas dúvidas como esta, de influências. Em seu site oficial, que resolveu aparecer em meu terceiro dia de busca, sua biografia escrita em 2004 fala da proximidade artística com Raul e Ramalho, e lembra de coincidências com o timbre de Bob Dylan e sua dedicação às letras das músicas. Quando eu finalmente resolvi procurar por Rockboys do YouTube, ao invés de Baia, encontrei uma entrevista do Programa do Jô, de 2008. Dividida nas partes I, II e III, a conversa me adiantou muito na busca por quem, afinal, é Baia. Mais que isso, me entreteu bastante. Vale a pena assistir ao menos para rir das loucas histórias. "A professora, coitada, imatura, que não tinha maturidade para receber minha figura, olhou para minha cara e disse: 'mas o que é isto?', aí eu olhei pra ela, eu realmente não sabia o que era aquilo, eu mesmo, naquele lugar", disse Baia.


A entrevista traz duas informações primordiais. A confirmação, pela boca de Maurício Baia (Olha! Agora ele tem nome!), de que as letras são o ponto central de seu trabalho, e a revelação de que estudava filosofia, o que explica o teor seu sua obra (Coincidência: Raul Seixas também estudou filosofia). Um outro ponto que o programa confirmou foi que Baia é doidão. E isso já diz muita coisa. Porém, a apresentação de Jô, apesar de não dizer ladainha, generaliza além da conta. "Ele é um poeta criativo, lidera uma banda alternativa que mistura sons do nordeste com música americana: Baia e Rockboys", define O Gordo, que perde a chance de desvendar o que há por traz do nome Baia. Acho que a presença de ritmos do nordeste é muito sutil, ao menos neste álbum. Eu diria que ele oferece pitadas de ritmos brasileiros ao rock, o que fornece uma identidade nacional som.


Apesar do Baia ser desconhecido, ao menos nos meios onde investiguei, aqui no centro do Brasil, ele tem mais de 10 anos de carreira. Lançou seis discos, de acordo com seu site. Deles, apenas Overdose de Lucidez (DeckDisc/PolyGram) e 4 Cabeça (Bolacha Discos), além do Baia no Circo (Som Livre), pertencem a algum selo comercial. Os demais, Na Fé, Entrada de Emegência e Habeas Corpus, são independentes. Outra coisa intrigante, é o público cativo na gravação do show Baia no Circo, no Rio de Janeiro. A plateia vibrou e cantou todas as músicas, o que se repetiu nos lançamentos em Curitiba e São Paulo.


Caso o show chegue a Brasília, não tenho certeza se o mesmo acontecerá com o público daqui. Mas, pelo menos eu e a quem apresentei o Baia, estaremos vibrantes diante do palco.



Para matar um pouco a curiosidade de quem a tiver, aqui vai as músicas dele que encontrei com qualidade apresentável: Habeas Corpus e Baia e a Doida . Assim, vocês também podem opinar sobre o trabalho do dito cujo.